
Parte II: Evento com Potencial Danoso
Evento com potencial danoso (hazard), como vimos no artigo anterior, é o fenômeno, substância, atividade humana ou condição que pode causar perda de vida, lesão ou outros impactos à saúde, dano à propriedade, perda de subsistência ou serviços, disrupção social e econômica, ou dano ambiental. [1]
Um dos principais desafios conceituais deste artigo é encontrar o melhor termo ou expressão em português para se referir a hazard – que, por si só, é um conceito largamente discutido em outros países e idiomas, dentro e fora das ciências sociais. Embora hazard seja frequentemente traduzido como perigo ou ameaça (por exemplo, em publicações da CEPED [2] e CEMADEN [3]), ambas as palavras são polissêmicas e nem todas as disciplinas as utilizam como sinônimos. Por esses motivos, traduzimos hazard aqui como “evento com potencial danoso” (EPD), em que “evento” se refere à configuração de fenômeno, substância, atividade humana ou condição que podem causar dano a alguém, em determinado tempo e espaço. Limitaremos o debate sobre o desafio da tradução aqui, uma vez que não é o nosso foco atual.
Dada a sua diversidade e complexidade no mundo moderno, os EPDs já passaram por diversas categorizações, sendo a mais básica e simples delas a divisão entre natural (ou físico, que se relaciona predominantemente a processos naturais) e tecnológico (que se relaciona a impactos induzidos ou criados pela ação humana).
Contudo, outras subdivisões, mais detalhadas, são possíveis, como a apresentada pelo site PreventionWeb: [4]
– Hazard biológico, de origem orgânica ou transmitidos por vetores biológicos, incluindo microorganismos patogênicos, toxinas e substâncias bioativas (ex.: epidemias e pandemias).
– Hazard ambiental, que podem incluir os hazards químicos, naturais ou biológicos, causados pela degradação ambiental (ex.: poluição da água e solo).
– Hazard geológicos ou geofísicos, originados dos processos internos do planeta (ex.: terremotos e erupções vulcânicas).
– Hazard hidrometeorológico, de origem atmosférica, hidrológica ou oceanográfica (ex.: enchentes, secas e ondas de calor).
– Hazard tecnológico, originado de condições industriais ou tecnológicas, procedimentos perigosos, falhas na infraestrutura ou atividades humanas específicas (ex.: resíduos tóxicos, acidentes de transporte e incêndios).
Outra subdivisão proposta é a da própria UNISDR, fonte do conceito de hazard utilizado por nós neste site. [1] Similar à proposta anteriormente, as categorias da UNISDR também são divididas em hazard biológico, geológico, hidrometeorológico e tecnológico, mas excluída a categoria de hazard ambiental e incluídas as categorias de:
– Hazard natural, decorrente de processos ou fenômenos naturais (ex.: chuva).
– Hazard sócio-natural, relacionado a uma maior frequência ou impacto dos processos e fenômenos naturais em determinadas áreas, como resultado da interação de tais processos com a superexploração e degradação do solo e recursos naturais (ex.: a chuva é um hazard natural, mas a ocupação irregular do solo provoca alagamento, deslizamento de terra etc.).
Um dos principais desafios na gestão de desastres é o fato de que os EPDs ocorrem em diferentes escalas de intensidade, tempo e espaço. Isso significa que tais eventos estão irregularmente distribuídos e, portanto, o risco também está distribuído de maneira desigual em diferentes porções do mundo. Dessa forma, além de possuírem diferentes capacidades para gerir risco de desastres, países, regiões e comunidades estão inseridos em diferentes contextos e condições, de modo que estratégias de adaptação e resiliência devem ser consideradas caso a caso.
Outro desafio relacionado à gestão de desastres é que os EPDs podem acontecer em sequência (chamado efeito dominó ou efeito cascada): um evento funciona como gatilho para outro evento. Um dos exemplos mais conhecidos é a tragédia causada pelo tsunami e pelo grande terremoto de Tohoku (também chamado grande terremoto de Sendai), que desencadeou no desastre nuclear da usina de Fukushima Daiichi, em 2011. [4] Futuramente, discutiremos como esse desafio se relaciona ao debate de sociedade de risco.
Adicionalmente, as cidades também enfrentam o desafio de prever o momento e intensidade exatos de um EPD, então os gestores públicos precisam lidar com as incertezas da gestão de riscos de desastres. Contudo, considerando os cenários mais comuns e o histórico de EPDs de cada região, é possível definir medidas preventivas para acentuar os impactos de tais eventos. Alguns exemplos incluem:
– Planejamento urbano, para que os sistemas humanos estejam em harmonia com os sistemas ecológicos da região (rios, áreas verdes etc.).
– Planejamento do solo com inclusão social e política de moradia, de modo que os assentamentos urbanos sejam construídos em áreas menos vulneráveis a EPDs.
– Incentivo à construção de laços interpessoais e coesão social dentro das comunidades, para que a resposta aos EPDs seja mais eficiente e solidária.
– Definição de medidas de mitigação e adaptação para diminuir o risco climático.
– Desenvolvimento de estratégias de conscientização pública e comunicação de risco, visando uma comunicação mais transparente e informativa entre o poder público e a sociedade.
– Realização de pesquisas locais e regionais em EPDs, bem como coleta de dados quantitativos e qualitativos para elaboração de estratégias e políticas públicas sob medida para cada área.
– Criação de Sistemas de Alerta Antecipada ou Sistemas de Alerta Precoce (early warning systems – EWS), que incluem, mas não se limitam a, estratégias para detectar, monitorar e prever EPDs; analisar riscos do EPD em questão; disseminar avisos; e ativar preparações de emergência e planos de resposta.
Conforme foi mencionado no primeiro artigo desta série, a mera ocorrência do evento com potencial danoso não configura o desastre. Este posicionamento vem de uma tradição de pesquisa que supera a visão tradicional de hazards como processos originários de forças externas, para uma visão que entende os hazards como uma interação entre processos naturais e humanos. [5] O EPD sozinho não configura o risco, e é por isso que hesitamos em chamar os hazards de perigo ou ameaça (mas a discussão, como dissemos inicialmente, segue aberta).
Os próximos artigos, como prometido, irão discutir exposição e vulnerabilidade, os outros componentes que, ao lado do EPD, constituem o risco. Insistimos que tais bases conceituais são fundamentais para aprofundar o debate de cidades resilientes, já que precisamos compreender as forças e fraquezas do meio urbano e seus sistemas para melhor desenhar estratégias que o tornem mais sustentáveis.
[1] United Nations International Strategy for Disaster Reduction (2009). UNISDR Terminology on Disaster Risk Reduction. Conferir: https://www.preventionweb.net/files/7817_UNISDRTerminologyEnglish.pdf
[2] CEPED (2009). Manual: gerenciamento de desastres. https://www.ceped.ufsc.br/wp-content/uploads/2014/09/Manual-de-Gerenciamento-de-Desastres.pdf
[3] Rachel Trajber, Débora Olivato e Victor Marchezine (2017). Conceitos e termos para gestão de riscos de desastres na educação. Conferir: http://educacao.cemaden.gov.br/medialibrary_publication_attachment?key=EDtGLgxTQiYlb8yFZUCUND1dSaw=
[4] https://www.preventionweb.net/disaster-risk/risk/hazard/
[5] Victor Marchezini (2018). As ciências sociais nos desastres: um campo de pesquisa em construção. Conferir: https://www.researchgate.net/publication/323075415_As_ciencias_sociais_nos_desastres_um_campo_de_pesquisa_em_construcao